GEOGRAFIA: SABER, CONHECIMENTO E CIÊNCIA

De todas as ciências a Geografia é uma das poucas que se constitui em um saber. Antes que houvesse uma ciência e uma disciplinar acadêmica e escolar chamada “geografia” já se constituíam saberes geográficos. Após a constituição da ciência geográfica “moderna” a existência e experiência espacial humana não deixaram de gerar diferente saberes geográficos. Para todos os povos e pessoas do mundo conhecimentos referentes ao espaço importam para suas vidas; conhecimentos sem os quais muitas coisas não poderiam fazer, pensar, sentir, querer ou imaginar (Claval, 2010).
Na Geografia essa “dimensão” ou “condição” geográfica/espacial da existência, da vida humana é conhecida como geograficidade (Dardel, 2011; Porto-Gonçalves, 2003; Moreira, 2009), assim como a dimensão/condição histórica/temporal da vida humana é conhecida como historicidade. Isso é muito mais que a ideia geral de que nada existe fora do espaço e do tempo. Já sabemos que desde Einstein, pelo menos, tempo e espaço são relativos e inseparáveis. O mundo, desde que começou a ser pensado e conhecido como “mundo” pelas pessoas foi expresso em termos de tempo-espaço; não da forma dicotômica (separados um do outro) como conhecemos, como nos habituamos a considerá-los desde a “modernidade” (Lander, 2005).
Então, o que quer dizer que a Geografia é um saber? E qual o significado desse saber geográfico para a construção do conhecimento geográfico, próprio de um campo da ciência moderna chamado Geografia? O saber geográfico é um conhecimento social produzido pelas pessoas através de suas experiências e relações espaciais ao longo da história e que se transmite, transforma, reproduz e materializa de diferentes maneiras, em diferentes formas de discursos, instituições, obras, corpos, espaços e ações. Ao longo da nossa existência humana cada povo, sociedade ou grupo social produziu um saber geográfico que foi se modificando com o tempo, transformando-se continuamente; assim como em nossa trajetória individual de vida incorporamos de certa forma esse saber que nos é transmitido – pelas linguagens que aprendemos e usamos, por exemplo, e pelas maneiras de viver, de fazer etc. – e produzimos nós mesmos, através de nossas experiências e relações espaciais; esse saber geográfico que nos permite situar-nos ou posicionar-nos no mundo, viver, criar e transformar o mundo.
Na verdade, o saber geográfico não é apenas um saber relativo ao espaço material: um conhecimento do espaço em que habitamos, no qual vivemos, no qual nos situamos. Nem mesmo um conhecimento útil das qualidades e possibilidades do espaço, utilizado para construirmos obras, realizar trabalho e ações, comunicarmo-nos e nos movermos (nos des-locarmos); usado para orientação, localização e delimitação etc. Todos esses conhecimentos do espaço são, de fato, parte do nosso repertório/patrimônio comum de saber geográfico, mas o que importa é que o “saber geográfico” inventa, criar, transforma o espaço material em espaço geográfico. O saber geográfico se constitui também de imaginações, representações, imagens, narrativas, discursos, ideologias, significados socialmente partilhados a respeito de nossas relações, práticas e experiências espaciais. Ou seja, a geograficidade de nossas vidas traduz-se numa geograficidade de todas as nossas práticas e conhecimentos – mesmo aqueles saberes que pensamos ser a-espaciais, por exemplo, os filosóficos, são geográficos; -, inclusive conhecimentos e ações/acontecimentos históricos.
O saber geográfico não é assim algo acessório e secundário, mas constitutivo de nossas vidas. A ciência geográfica só pode existir quando começa a separar os saberes geográficos das práticas espaciais e dos demais conhecimentos humanos, particularizando e especializando uma forma de conhecimento denominada científica, ou seja, definida como racional, objetiva, sistemática e universal. Desse modo, a base da construção da ciência geográfica moderna é a separação dos saberes geográficos de todas as outras formas de conhecimento, mais ainda, de todas as formas de práticas, de ação, de atividade, de fazer, ver e dizer socialmente construídos. Sem esses saberes geográficos já constituídos não poderia haver ciência geográfica. Atualmente a ciência geográfica continua a se alimentar dos saberes geográficos socialmente produzidos para produzir seus conhecimentos geográficos específicos, através da elaboração de “teorias”, ou seja, de conceitos geográficos articulados.
Ao caçar e pescar, guerrear e comercializar, desenvolver agricultura ou a criação de animais os homens precisavam de conhecimentos geográficos que ao longo desse processo se transformaram e ampliaram, ou seja, no decorrer das práticas, das ações e das relações que constituíram no mundo as diferentes maneiras de plantar, colher, domesticar e criar animais (Claval, 2010). Para se deslocar de um lugar ao outro a pé, a cavalo, com carroça ou com barcos, pelos rios, lagos e pelos mares os homens precisaram desenvolver determinados conhecimentos do espaço, que ao longo desses deslocamentos foram se modificando e ampliando extraordinariamente (Claval, 2010). Em todo caso, os saberes geográficos necessários e produzidos pela agricultura, pecuária e transporte, migração, comércio e comunicação constituíram as relações espaciais humanas. Atualmente, cada um de nós, em nossas relações espaciais cotidianas também usa e produz sabres geográficos (ou espaciais), mesmo sem nos darmos conta disso. E, diferentes relações e experiências espaciais produzem/mobilizam diferentes conhecimentos geográficos. Os saberes geográficos são parte importante do patrimônio cultural herdado e produzido por um grupo social ou uma sociedade.
Evidentemente que parte do conhecimento geográfico que mobilizamos hoje em nossa vida constitui-se de informações, conceitos e conhecimentos gerados pela ciência geográfica e demais “ciências espaciais” especializadas, ciências que lidam diretamente como o espaço, como a arquitetura e a engenharia, por exemplo. Mas, informações sobre o espaço não são conhecimentos ou saberes geográficos. O saber geográfico é um saber da experiência e da relação espacial, e não é constituído simplesmente de informações sobre o espaço, seus aspectos ou qualidades materiais, racionalmente elaboradas, como distâncias, localizações, limites, distribuições, aspectos e movimentos físicos etc. Esses dados quantitativos ou objetivos sobre o espaço material são meramente informações, ainda que a Geografia (a ciência geográfica) se utilize dessas informações para gerar conhecimentos e o saber geográfico que possuímos recorra para firmar-se ou justificar-se enquanto saber.
Uma coisa, por exemplo, é usar um mapa para chegar em determinado lugar, outra coisa é um guia nos levar a determinado lugar sem mapa nenhum, a não ser o que está na sua cabeça. No primeiro caso, temos um conhecimento geográfico do espaço (materializado no mapa, objetivado) sendo usado para orientar o deslocamento, no outro temos um sabe geográfico incorporado num sujeito sendo mobilizado para mesma tarefa. Mas, os mapas por mais elaborados que sejam ficam defasados e podem estar repletos de falhas e erros; mas o mapa da experiência do sujeito, o mapa que está incorporado na memória da pessoa, parte do seu saber geográfico, não tem base em informações ou princípios lógico-matemáticos, mas nem por isso é menos preciso e importante, e está sempre se modificando à medida que o mundo muda. Às vezes esse mapa incorporado torna-se se base para o cartógrafo elaborar e corrigir seu mapa.
Assim, a Geografia é uma forma de saber definitivamente constitutiva de nossa existência, presente em todas as nossas práticas, desde as mais cotidianas até as geopolíticas, por isso o geo como prefixo de políticas. Esse saber geográfico que todo ser humano constrói e possui é de fundamental importância para que se constituísse um conhecimento geográfico científico, ainda que atualmente possamos questionar sua pretensão de validade universal, de racionalidade, objetividade, etc.; claramente produto de relações e experiências espaciais moderno-coloniais ocidentais, europeias, capitalistas, racistas e patriarcais. Ou seja, baseadas na presumível superioridade da ciência (dessa forma de conhecimento ocidental moderna) sobre todas as formas de conhecimento; da Europa e do ocidente cristão sobre “o resto do mundo”; do homem sobre a mulher; do homem branco sobre o negro, índio, mestiço etc.
A questão é que a Geografia, como ciência, como saber e como conhecimento, apresenta-se como uma dimensão e condição imprescindível da vida e das realizações humanas. A ciência geográfica é apenas uma das formas que assumem os saberes e conhecimentos geográficos que produzimos, mas nem por isso é a mais importante ou mais “elevada” forma que essa geograficidade da vida se apresenta. No entanto, como a ciência, o saber e o conhecimento geográfico se imbricam, é muito difícil saber onde um começa e outro termina, qual é tributário de qual, em que um predomina sobre os demais. No entanto, podemos apresentar uma distinção metodológica, apenas para efeito didático, sabendo-se que as fronteiras entre estes não são fixas, claramente definidas ou discerníveis nas relações e experiências concretas da vida.
Conhecimentos geográficos são todos os conhecimentos produzidos e materializados em meios materiais e discursivos específicos, inclusive em outros campos de conhecimentos científicos que não propriamente a Geografia moderna. Conhecimentos do espaço produzidos pela literatura, música, teatro, cinema, artes em geral; pela cartografia, arquitetura, jornalismo, fotografia, filosofia, religião, história, sociologia, engenharia, física etc. Os conhecimentos geográficos não são apenas conhecimentos do espaço ou sobre o espaço material, específicos desses campos do discurso e da ação humana, mas os conhecimentos espaciais que circulam entre eles, que estes compartilham; conhecimentos com que estes campos sociais do saber/fazer produzem, são utilizados para produzir o espaço geográfico.
Saberes geográficos, como já vimos, são saberes espaciais gerados e necessários (ou seja, constitutivos) das práticas, experiências e relações sociais e espaciais humanas compartilhados ou específicos de um grupo, de um povo ou de uma sociedade e cultura. Os saberes geográficos também se materializam em obras, espaços, instituições e discursos, mas geralmente apresentam-se incorporado nos sujeitos, atores, agentes humanos, constituindo suas percepções, concepções, linguagem, narrativas e suas práticas espaciais cotidianas. Em relação aos conhecimentos geográficos mais especializados, os saberes geográficos dão espessura ou estofo às nossas maneiras de ver, dizer e fazer o espaço, ou seja, constituem a maneira de todos e de cada um de perceber, comunicar/representar e construir/organizar os espaços cotidianos da vida. Os saberes geográficos precisam ser compartilhados, socialmente produzidos e utilizados, para que façam sentido, tenham valor e efeito/eficácia. Os saberes geográficos constituem a forma como efetiva e afetivamente nos vinculamos e relacionamos com determinados lugares, com determinadas pessoas através/nos espaços em que vivemos e nos movemos.
A ciência geográfica, ou conhecimento geográfico científico, é uma forma de conhecimento característica da “modernidade”, que se apresenta em forma de informações sistematicamente produzidas, teorias e conceitos espaciais elaborados e operacionais, com os quais o mundo é interpretado e compreendido em sua diversidade e amplitude. Ainda que seja um conhecimento gerado dentro de um campo de conhecimento específico da ciência moderna e por sujeitos situados em determinados lugares, culturas e sociedade, este conhecimento da ciência geográfica tem como característica o fato de desenvolver, aplicar ou operar com conceitos que “valem”, podem ou pretendem valer para espaços do mundo todo.
O que difere o conhecimento geográfico científico, da ciência geográfica, dos demais conhecimentos geográficos, não é o fato de ser universal, racional, objetivo ou mais sistemático, quer dizer mais válido e verdadeiro que os demais conhecimentos e saberes geográficos, mas sim o fato de operar com conceitos sistematicamente elaborados a partir de maneiras próprias de produzir informações e realizar análises e interpretações do espaço, ou seja, se distinguem destes por explicitar a maneira pela qual foi produzido, os princípios em que se sustenta, expondo-se a críticas, contestações e reelaborações permanentes. A Geografia como ciência, assim, precisa obrigatoriamente dialogar com os saberes geográficos e os diferentes conhecimentos geográficos partilhados pelos demais campos do saber para construir seus conhecimentos do espaço.

Assim, quando na escola, a Geografia, nos fala sobre os diferentes espaços do mundo em que vivemos, fala de um espaço geográfico construído socialmente. O mundo enquanto um espaço habitado e construído pelos seres humanos, é interpretado pela Geografia através de conceitos diversos como cidade (urbano), campo (rural), paisagem, lugar, região, rede, território, natureza, meio ambiente, ecossistema etc. Muitos desses conceitos não são exclusivos da Geografia, mas na Geografia apresentam definições próprias, diferentes de outros campos, e que esta compartilha com outros campos de conhecimento, ao mesmo tempo em que esses conceitos são noções a que recorremos diariamente para ver, dizer e realizar nossas práticas sócio-espaciais, como é o caso de lugar e paisagem, por exemplo. Na Geografia escolar conhecimentos e saberes geográficos se apresentam articulados aos conhecimentos geográficos produzidos pela ciência geográfica.

Referências
CLAVAL, Paul. Terra dos Homens: a geografia. Trad. Domitilia Madureira. São Paulo: Contexto, 2010.
DARDEL, Eric. O homem e a terra. São Paulo, Perspectiva, 2011. 
MOREIRA, Ruy. O que é Geografia? 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2009 (Col. Primeiros Passos, 48).
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A geograficidade do social: uma contribuição para o debate metodológico sobre estudos de conflito e movimentos sociais na América Latina. En publicación: Movimientos sociales y conflictos en América Latina. José Seoane. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Argentina. Programa OSAL, 2003.

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