Os livros didátilos e os
professoras e professoras de Geografia começam, geralmente, explicando para
seus alunos e alunas o que é a Geografia e o que a Geografia estuda. Estas duas
questões se confundem, pois a geografia se define por aquilo que estuda. Alguns
ainda recorrem àquela velha etimologia da palavra: Geo (Terra) + grafia
(estudo). A geografia significa etimologicamente o estudo da Terra.
O geógrafo Carlos Walter
Porto-Gonçalves (2002) propõe uma outra etimologia, recorrendo ao significado
originário do segundo termo que compõe a palavra geografia: graphia, do grego, significa escrita.
Portanto, nesse sentido, Geografia passa a ser a escrita da Terra, as marcas,
os traços significativos, expressivos que os homens e mulheres criam na terra,
sobre a terra como uma escrita. Nesse sentido, transforma a palavra Geografia
(um substantivo) em um verbo. O que fazemos nós seres humanos e geógrafos é
geografar a Terra. Este sentido está em consonância com o fato de reconhecermos
que fazemos “a Geografia”, assim como e ao mesmo tempo em que “fazemos a
História”.
Podemos aceitar esse importante
deslocamento de sentido etimológico/epistemológico e propor também que se
cambie o sentido original do termo geo,
ou seja, a palavra grega para terra. Geo, que significa Terra, é, em verdade,
uma forma latina (masculino) da palavra grega Gaia. Na Grécia antiga gaia era uma deusa relacionada à terra, mas também significava alegria. Estes sentidos da palavra são
recuperados e ressituados por Nietzsche em seu livro A Gaia Ciência. A geografia deveria escrever-se Gaia-graphia. Nossa geografia seria a
escrita alegre da terra, ou um saber, uma ciência alegre da escrita da terra,
do ato de grafar alegremente a terra. Quando os homens e mulheres escrevem a
terra, geografam-na, tornam-na um espaço significativo. Só é espaço geográfico
o espaço que tem significado para os homens e mulheres, ou seja, é
significativamente apropriado. Assim, grafar a terra é tornar o espaço
expressivo e significativo para nossa existência, e ao mesmo tempo é produzir
um saber, uma ciência alegre sobre essa terra escrita por nossas ações. A
Geografia é uma gaia ciência, é um ato de escrever, de imprimir na Terra nossas
marcas expressivas, geografando-a.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira cita
como epigrafe uma passagem da pesquisa de Maria Regina T. Sader (Espaço e Luta no Bico do Papagaio) muito
significativa:
Eu perguntei se não aprendiam nada de
Geografia. Não precisa, disse um deles, isso a gente aprende é no pé. Os
igarapés vão pro Tocantins. O Tocantins desce pro mar, é só olhá, né? No topo
daquele monte não serve plantá. A terra é ruim. No baixo é boa. É no pé mesmo,
andando e olhando. (Apud Oliveira, 2008: 135).
Geografia se aprende no pé, andando
e olhando. Por isso que o agricultor do Bico do Papagaio não via necessidade de
se aprender geografia (na escola), pois a geografia de que eles precisavam,
essa se aprendia no pé, com a experiência corporal, ao andar (mover-se) e olhar
(observar) o meio geográfico em que se vive. Mas, vemos que este compreende
como “geografia” o conhecimento do espaço físico-natural: para onde correm os
igarapés e o rio e onde a terra é boa ou ruim para plantar. Já há uma concepção
de geografia animando sua forma de compreender a geografia: a geografia é um
conhecimento da natureza, do meio físico que habitamos e com o qual lidamos.
A geografia antes de tudo é um dos
“saberes vernaculares”, um “saber banal”, por isso que Paul Claval escreve que:
[...] a geografia está presente nas
práticas, nas habilidades, nos conhecimentos que todos sempre mobilizamos em
nossa vida diária, nos preceitos que os governos observam para dirigir seus
países ou nos procedimentos aos quais recorrem os empreendedores para conceber,
fabricar e divulgar os bens que eles produzem e vendem (2010: 8).
Sendo assim, a geografia pode ser
vista como um saber produzido e usado corriqueiramente por todos os sujeitos,
em vários contextos sociais, enquanto um saber presente em práticas,
habilidades e conhecimentos que “tratam dos meios nos quais vivem os grupos” e
“também dizem respeito ao tecido social no qual evoluem as populações e às
redes que o estruturam; eles tratam das representações do que dá sentido às
suas vidas” (CLAVAL, 2010: 12), sendo que “Desde a origem dos tempos, todo
homem é geógrafo” (CLAVAL, 2010: 11).
Ruy Moreira (2009: 8) cita uma
definição de geografia de Estrabão[1], considerado o criador da
geografia:
[...] a geografia familiariza-nos com os
ocupantes da terra e dos oceanos, com a vegetação, os frutos e peculiaridades
dos vários quadrantes da Terra; e o homem que a cultiva é um homem
profundamente interessado no grande problema da vida e da felicidade.
Segundo Ruy Moreira (2009: 8) “O
homem, a terra, a vida e a felicidade, as relações que os enlaçam na totalidade
dos modos de vida variáveis no espaço e no tempo é o que de Estrabão até hoje
definem a geografia e seu modo de envolvimento”. A frase atribuída a Estrabão
merece que nos detenhamos em seus detalhes. Primeiro,
a geografia nos familiariza com os ocupantes da terra (solo, chão, base física)
e dos oceanos (as águas). Isso significa que a geografia nos proporciona
conhecer (familiarizar-nos) com aqueles que ocupam terra e os oceanos, sejam os
seres humanos, sejam outras criaturas vivas. A terra e as águas são ocupadas de
diferentes maneiras em cada espaço e tempo do nosso planeta, a geografia nos
possibilita saber como esses “ocupantes” vivem em cada um desses “quadrantes da
Terra”, quer dizer, considerando o planeta em sua totalidade.
Segundo, a geografia nos
familiariza também com a vegetação, os frutos e as peculiaridades dos vários
quadrantes da Terra, o planeta como um todo. Nesse sentido, a geografia é um
conhecimento da variação ou diferenciação do planeta em termos humanos e
naturais (vegetação, frutos). Frutos aqui também podem ser considerado os
frutos mesmos (das árvores), mas também os frutos da terra e dos oceanos, ou
seja, o que produzem seus ocupantes, o que é produzido em diferentes lugares. A
geografia volta-se para as atividades produtivas dos seres vivos em geral e dos
seres humanos em particular. Conhecer o que se produz (e como se produz) em
cada lugar é conhecer a geografia. A geografia é um saber das “peculiaridades”
da Terra em sua totalidade, ou seja, é um saber do que há de específico, único
em cada lugar e em todo lugar do planeta, é um saber englobante. Estas
peculiaridades – o que torna um lugar diferente dos demais – é uma marca da
geografia, sua forma de considerar porque os ocupantes da terra e oceanos, e os
elementos que a constituem, como a vegetação, bem como os “frutos” desse
lugares, são tão diferentes uns dos outros.
Terceiro, o conhecimento geográfico
volta-se para o grande problema da vida e da felicidade. Creio ser esta a parte
mais enigmática e instigante da frase atribuída a Estrabão em sua definição da
geografia. Por que o geógrafo (o homem que cultiva a geografia) está
profundamente interessado justamente no problema da vida e da felicidade?
Afinal, em que conhecer os ocupantes da terra e dos oceanos, a vegetação, os
frutos e as peculiaridades dos vários quadrantes da Terra leva o sujeito desse
conhecimento a se interessar, ou pressupõe que este esteja interessado, por
esse problema da vida e da felicidade? Talvez, temos algo aqui, no início da
geografia, que perdura realmente até hoje: é impossível não se familiarizar com
a diversidade de formas de ocupação, paisagens, produtos e diferenças de cada
lugar do nosso planeta sem nos interessar pelo sentido e destino da vida em
geral (o problema da vida) e também o nosso destino humano comum, enquanto uns
dos ocupantes da terra e dos oceanos (o problema da felicidade). De que adianta
conhecer tudo isso, familiarizar-nos com os modos de ser e de viver de todos os
lugares do mundo, sem se preocupar com problema da vida e da felicidade? A vida
e a felicidade são realmente problemas com que todo saber geográfico nos
defronta ainda hoje. Como viver? Como encontrar a “felicidade”, ou seja, uma
boa vida, um viver bem? Como con-viver bem com todos os “ocupantes” humanos e
não humanos desse planeta Terra? Ao geógrafo preocupa-o conhecer o mundo para
transformá-lo.
Referências:
CLAVAL, Paul. Terra
dos Homens: a geografia. Trad. Domitilia Madureira. São Paulo: Contexto,
2010.
MOREIRA,
Ruy. O que é Geografia? 2ª Ed. São
Paulo: Brasiliense, 2009 (Col. Primeiros Passos, 48).
OLIVEIRA,
Ariovaldo Umbelino de (Org.). Para onde
vai o ensino de Geografia? 9 ed. São Paulo: Contexto, 2008 (Repensando o
Ensino).
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter e PEREIRA, Edir Augusto Dias. De América Latina, de Abya Yala, de América
Mestiça, de América Criolla e de suas Contradições. America Latina en Movimiento Online. 23/09/2009. Disponível
em: <http://www.alainet.org/es/node/136544#sthash.ZzQoziSx.dpuf>.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Da geografia às
geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades. In: La
Guerra Infinita: Hegemonía y terror mundial. Ana Esther Ceceña y Emir
Sader. CLACSO, 2002.
SPOSITO,
Eliseu Savério e SOBREIRA, Antonio Elisio Garcia. Caminhos do Pensamento Geográfico. Rede São Paulo de Formação
Docente. Curso de Especialização para o quadro do Magistério da SEESP: Ensino
Fundamental II e Ensino Médio. UNESP: São Paulo, 2011.
[1] Estrabão nasceu
da Amaseia (atual província da Amasya, na Turquia), então fazendo parte do
Império Romano (63 ou 64 a.C. e cerca de 24 d.C.). Originário de família rica,
pôde prosseguir seus estudos em Roma, onde leu os filósofos e geógrafos que o
antecederam. Fez viagens ao Egito e à Etiópia. Seu nome é um termo utilizado
pelos romanos para designar aqueles que tinham os olhos deformados ou
portadores de estrabismo (SPÓSITO e SOBREIRA, 2011: 11).
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