A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESPAÇO PELA CRIANÇA

"... por enquanto, ei-lo sentado no chão, imerso num profundo vazio.
Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira voltada para dentro: todo o seu equilíbrio é interno.

Na parede tem o retrato de O MENINO. É difícil poder olhar para o alto sem apoiar-se num móvel. Isto ainda ele não treinou.
Agora, a inteira atenção voltada para fora, ele observa o que o ato de se erguer provocou: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita.
Sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Desliga-o, por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz e, num único gesto total, ele cai sentado". (Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, p.151).


A maioria dos estudos que buscam analisar a construção do conceito de espaço pela criança é de viés psicológico ou psicologizante. A maioria se baseia na teoria de Piaget (1896-1980), à qual a Geografia recorre com frequência e sem mesmo questionar a validade universal de suas ideias. Logicamente que esta teoria de Piaget pode muito contribuir para a forma como a noção ou conceito de espaço é construído pelas crianças, mesmo antes de adentrar a escola. Todavia, busca-se também apoio noutro teórico, que não se refere necessariamente à construção da noção de espaço, mas à construção de conceitos de uma forma geral: Vygostsky. Como vocês sabem, estes são duas figuras carimbadas na Pedagogia.
Dos dois, penso que as contribuições de Vygostky são as mais interessantes, ainda que os geógrafos tenham recorrido a este mais para entender e explicar a formação de conceitos ou conhecimentos geográficos de uma forma geral[1].  Outro psicólogo que também tratou do processo em que a criança constrói a noção/conceito de espaço foi Winnicot, mas este não tem sido muito considerado pelos geógrafos, pelo menos aqui no Brasil.
Desde a mais tenra idade, desde o nascimento, as crianças constroem com grau crescente de complexidade uma noção de espaço que não é apenas topológica, mas profundamente simbólica, porque herdada e construída dentro de um ambiente social, geográfico, histórico e cultural específico. Uma criança em algum país da África, vivendo ainda numa tribo, constrói da mesma forma um conceito de espaço como uma criança aqui no Brasil morando em uma cidade grande em um apartamento? O que existe de diferente ou em comum entre o modo como uma e outra criança constroem o conceito de espaço? Uma resposta imediata é o próprio espaço em que estas crianças são criadas, a cultura a que pertencem, ou seja, o modo como são criadas, educadas; as línguas e valores de seus pais, de seu grupo social... Tudo isso é diferente e constitui formas diferentes de construção da noção de espaço pelas crianças. São outros objetos com que têm contato, outros materiais e meios em que se move; outros os alimentos e gostos, outras as sonoridades que seus corpos experimentam.
A noção de espaço na criança, inicialmente, é construída a partir do desenvolvimento e dos movimentos do seu corpo, de acordo com o espaço social e material e o ambiente cultural em que nasce e vive. Entre a criança (o seu corpo) e o espaço (físico) existe todo um conjunto de mediações, antes e depois que possa deslocar-se no espaço e deslocar coisas no espaço por si mesma, como corpo da mãe, os objetos e, em particular, a linguagem e as representações espaciais. Antes de começar a engatinhar e andar, antes de começar a falar, no entanto, o processo de construção da noção de espaço pela criança já se desenrola a partir de seus sentidos, das sensações que começa distinguir no seu corpo: o frio, o calor; o seco, o molhado e úmido; as texturas e consistência dos objetos, superfícies e dos outros corpos; luminosidades, escuridão, penumbra; as cores e seus matizes; o contato com a água no banho; os cheiros das pessoas, das coisas, dos objetos; do produtos que lhe passam, com que lhe asseiam; dos remédios e vitaminas; dos hospitais, dos carros, dos quartos etc.
Antes de começar engatinhar, andar e falar, ou seja, nos primeiros anos de vida, a noção de espaço da criação é completamente reflexa e depende das reações e repostas quase automáticas do seu corpo. No entanto, todos os estímulos externos sensoriais que experimenta produz inicialmente uma noção de espaço difusa, indistintamente percebido; um espaço como uma externalidade sem qualidades distinguíveis. Até começar a andar e falar. (Não devemos esquecer que neste período inicial o sistema nervoso, o cérebro, ainda está em desenvolvimento).
É através do engatinhar, do andar e do falar que a noção de espaço na criança começa a se desenvolver aceleradamente de forma complexa; para além dos estímulos e das respostas sensórias reflexas do corpo. Um espaço topológico, que pode experimentar com o próprio movimento do corpo, pelo manusear coisas e pelas palavras e sons, começa a ganhar um sentido, no qual pode identificar diferentes texturas, pesos, cheiros, cores, nomes, sons etc. De fato, a criança aprende a reconhecer o espaço por onde se move, com mais frequência por si mesma, e com objetos nomeados e dispostos de uma dada maneira.
Então, antes de entrar na escola as crianças já desenvolveram uma noção de espaço a partir de suas experiências cotidianas, das aprendizagens que incorpora através das linguagens (em particular a falada e visual ou audiovisual). Podemos chamar esse conceito de espaço da criança, assim, de um conceito cotidiano, mas que não se reduz apenas às dimensões euclidianas do espaço, em geral relacionada à distância e localização, pois envolve um conjunto de símbolos e normas (lugares proibidos, por exemplo), além de outras formas de distinção e valorização de lugares por elas frequentados com ou sem os adultos.
Além do mais, essa noção de espaço não se reduz apenas aos lugares que ela conhece diretamente, no qual esteve ou costuma ir (a casa, a rua, a praça, a igreja etc.), pois as crianças estão sujeitas ao bombardeamento de imagens que atualmente se fazem mesmo dentro dos lares através da televisão, desenhos e fotografias. Essas imagens e informações que as crianças recebem sobre lugares que desconhece implicam na maneira como compreendem o espaço, nas imagens e conceitos que criam dos espaços que conhecem.
Atualmente, mesmo no campo, as crianças tem nessas imagens uma fonte importante da construção pré-escolar da noção de espaço. Além dos mais, a interligação de todos os lugares pelas tecnologias e pela circulação de produtos comercializados, produzidos em lugares diferentes e distantes, fazem dos lugares verdadeiros mosaicos de objetos, elementos e processos originados em lugares distantes e diferentes. O cotidiano que as crianças experimentam em quase todos os lugares é marcado por essas conexões que os lugares mantêm com outros, às vezes a presença ostensiva de elementos, objetos, produtos, linguagens, geradas em diferentes partes do mundo. Isso que a geógrafa Doreen Massey (2000) chamou de o sentido global do lugar constitui parte fundamental da experiência e das relações espaçais das crianças, bem como das representações do espaço, que criam nas crianças o conceito cotidiano de espaço. 
Assim, para que o ensino de Geografia possa construir um conceito geográfico de espaço nas crianças, não adianta apenas levar em conta as fases de seu desenvolvimento, tal como descritas e caracterizadas por Piaget, nem simplesmente a noção de contexto/cotidiano e cultura como algo vinculado especificamente a um determinado lugar. É preciso levar em conta e compreender como nos lugares em que as crianças vivem o mundo se realiza, através de uma multiplicidade de relações com lugares próximos e distantes. Ou seja, é preciso compreender que relações e representações espaciais constituem a maneira da criança compreender o espaço, interpretar o espaço a partir de suas múltiplas referências sociais, materiais e simbólicas.
Aquilo que chamamos de “conceito cotidiano”, a partir do qual podemos construir os conceitos científicos constitui-se de um conjunto de representações espaciais (espaço concebido) e de espaços de representação (espaço vivido) que informam e constituem as práticas espaciais (espaço percebido)[2] das crianças nas sociedades em que vivem, nos grupo sociais em que estão mais diretamente integrados. 



[1] Cavalcanti, 2008.
[2] Lefevbre, 2000.

GEOGRAFIA: SABER, CONHECIMENTO E CIÊNCIA

De todas as ciências a Geografia é uma das poucas que se constitui em um saber. Antes que houvesse uma ciência e uma disciplinar acadêmica e escolar chamada “geografia” já se constituíam saberes geográficos. Após a constituição da ciência geográfica “moderna” a existência e experiência espacial humana não deixaram de gerar diferente saberes geográficos. Para todos os povos e pessoas do mundo conhecimentos referentes ao espaço importam para suas vidas; conhecimentos sem os quais muitas coisas não poderiam fazer, pensar, sentir, querer ou imaginar (Claval, 2010).
Na Geografia essa “dimensão” ou “condição” geográfica/espacial da existência, da vida humana é conhecida como geograficidade (Dardel, 2011; Porto-Gonçalves, 2003; Moreira, 2009), assim como a dimensão/condição histórica/temporal da vida humana é conhecida como historicidade. Isso é muito mais que a ideia geral de que nada existe fora do espaço e do tempo. Já sabemos que desde Einstein, pelo menos, tempo e espaço são relativos e inseparáveis. O mundo, desde que começou a ser pensado e conhecido como “mundo” pelas pessoas foi expresso em termos de tempo-espaço; não da forma dicotômica (separados um do outro) como conhecemos, como nos habituamos a considerá-los desde a “modernidade” (Lander, 2005).
Então, o que quer dizer que a Geografia é um saber? E qual o significado desse saber geográfico para a construção do conhecimento geográfico, próprio de um campo da ciência moderna chamado Geografia? O saber geográfico é um conhecimento social produzido pelas pessoas através de suas experiências e relações espaciais ao longo da história e que se transmite, transforma, reproduz e materializa de diferentes maneiras, em diferentes formas de discursos, instituições, obras, corpos, espaços e ações. Ao longo da nossa existência humana cada povo, sociedade ou grupo social produziu um saber geográfico que foi se modificando com o tempo, transformando-se continuamente; assim como em nossa trajetória individual de vida incorporamos de certa forma esse saber que nos é transmitido – pelas linguagens que aprendemos e usamos, por exemplo, e pelas maneiras de viver, de fazer etc. – e produzimos nós mesmos, através de nossas experiências e relações espaciais; esse saber geográfico que nos permite situar-nos ou posicionar-nos no mundo, viver, criar e transformar o mundo.
Na verdade, o saber geográfico não é apenas um saber relativo ao espaço material: um conhecimento do espaço em que habitamos, no qual vivemos, no qual nos situamos. Nem mesmo um conhecimento útil das qualidades e possibilidades do espaço, utilizado para construirmos obras, realizar trabalho e ações, comunicarmo-nos e nos movermos (nos des-locarmos); usado para orientação, localização e delimitação etc. Todos esses conhecimentos do espaço são, de fato, parte do nosso repertório/patrimônio comum de saber geográfico, mas o que importa é que o “saber geográfico” inventa, criar, transforma o espaço material em espaço geográfico. O saber geográfico se constitui também de imaginações, representações, imagens, narrativas, discursos, ideologias, significados socialmente partilhados a respeito de nossas relações, práticas e experiências espaciais. Ou seja, a geograficidade de nossas vidas traduz-se numa geograficidade de todas as nossas práticas e conhecimentos – mesmo aqueles saberes que pensamos ser a-espaciais, por exemplo, os filosóficos, são geográficos; -, inclusive conhecimentos e ações/acontecimentos históricos.
O saber geográfico não é assim algo acessório e secundário, mas constitutivo de nossas vidas. A ciência geográfica só pode existir quando começa a separar os saberes geográficos das práticas espaciais e dos demais conhecimentos humanos, particularizando e especializando uma forma de conhecimento denominada científica, ou seja, definida como racional, objetiva, sistemática e universal. Desse modo, a base da construção da ciência geográfica moderna é a separação dos saberes geográficos de todas as outras formas de conhecimento, mais ainda, de todas as formas de práticas, de ação, de atividade, de fazer, ver e dizer socialmente construídos. Sem esses saberes geográficos já constituídos não poderia haver ciência geográfica. Atualmente a ciência geográfica continua a se alimentar dos saberes geográficos socialmente produzidos para produzir seus conhecimentos geográficos específicos, através da elaboração de “teorias”, ou seja, de conceitos geográficos articulados.
Ao caçar e pescar, guerrear e comercializar, desenvolver agricultura ou a criação de animais os homens precisavam de conhecimentos geográficos que ao longo desse processo se transformaram e ampliaram, ou seja, no decorrer das práticas, das ações e das relações que constituíram no mundo as diferentes maneiras de plantar, colher, domesticar e criar animais (Claval, 2010). Para se deslocar de um lugar ao outro a pé, a cavalo, com carroça ou com barcos, pelos rios, lagos e pelos mares os homens precisaram desenvolver determinados conhecimentos do espaço, que ao longo desses deslocamentos foram se modificando e ampliando extraordinariamente (Claval, 2010). Em todo caso, os saberes geográficos necessários e produzidos pela agricultura, pecuária e transporte, migração, comércio e comunicação constituíram as relações espaciais humanas. Atualmente, cada um de nós, em nossas relações espaciais cotidianas também usa e produz sabres geográficos (ou espaciais), mesmo sem nos darmos conta disso. E, diferentes relações e experiências espaciais produzem/mobilizam diferentes conhecimentos geográficos. Os saberes geográficos são parte importante do patrimônio cultural herdado e produzido por um grupo social ou uma sociedade.
Evidentemente que parte do conhecimento geográfico que mobilizamos hoje em nossa vida constitui-se de informações, conceitos e conhecimentos gerados pela ciência geográfica e demais “ciências espaciais” especializadas, ciências que lidam diretamente como o espaço, como a arquitetura e a engenharia, por exemplo. Mas, informações sobre o espaço não são conhecimentos ou saberes geográficos. O saber geográfico é um saber da experiência e da relação espacial, e não é constituído simplesmente de informações sobre o espaço, seus aspectos ou qualidades materiais, racionalmente elaboradas, como distâncias, localizações, limites, distribuições, aspectos e movimentos físicos etc. Esses dados quantitativos ou objetivos sobre o espaço material são meramente informações, ainda que a Geografia (a ciência geográfica) se utilize dessas informações para gerar conhecimentos e o saber geográfico que possuímos recorra para firmar-se ou justificar-se enquanto saber.
Uma coisa, por exemplo, é usar um mapa para chegar em determinado lugar, outra coisa é um guia nos levar a determinado lugar sem mapa nenhum, a não ser o que está na sua cabeça. No primeiro caso, temos um conhecimento geográfico do espaço (materializado no mapa, objetivado) sendo usado para orientar o deslocamento, no outro temos um sabe geográfico incorporado num sujeito sendo mobilizado para mesma tarefa. Mas, os mapas por mais elaborados que sejam ficam defasados e podem estar repletos de falhas e erros; mas o mapa da experiência do sujeito, o mapa que está incorporado na memória da pessoa, parte do seu saber geográfico, não tem base em informações ou princípios lógico-matemáticos, mas nem por isso é menos preciso e importante, e está sempre se modificando à medida que o mundo muda. Às vezes esse mapa incorporado torna-se se base para o cartógrafo elaborar e corrigir seu mapa.
Assim, a Geografia é uma forma de saber definitivamente constitutiva de nossa existência, presente em todas as nossas práticas, desde as mais cotidianas até as geopolíticas, por isso o geo como prefixo de políticas. Esse saber geográfico que todo ser humano constrói e possui é de fundamental importância para que se constituísse um conhecimento geográfico científico, ainda que atualmente possamos questionar sua pretensão de validade universal, de racionalidade, objetividade, etc.; claramente produto de relações e experiências espaciais moderno-coloniais ocidentais, europeias, capitalistas, racistas e patriarcais. Ou seja, baseadas na presumível superioridade da ciência (dessa forma de conhecimento ocidental moderna) sobre todas as formas de conhecimento; da Europa e do ocidente cristão sobre “o resto do mundo”; do homem sobre a mulher; do homem branco sobre o negro, índio, mestiço etc.
A questão é que a Geografia, como ciência, como saber e como conhecimento, apresenta-se como uma dimensão e condição imprescindível da vida e das realizações humanas. A ciência geográfica é apenas uma das formas que assumem os saberes e conhecimentos geográficos que produzimos, mas nem por isso é a mais importante ou mais “elevada” forma que essa geograficidade da vida se apresenta. No entanto, como a ciência, o saber e o conhecimento geográfico se imbricam, é muito difícil saber onde um começa e outro termina, qual é tributário de qual, em que um predomina sobre os demais. No entanto, podemos apresentar uma distinção metodológica, apenas para efeito didático, sabendo-se que as fronteiras entre estes não são fixas, claramente definidas ou discerníveis nas relações e experiências concretas da vida.
Conhecimentos geográficos são todos os conhecimentos produzidos e materializados em meios materiais e discursivos específicos, inclusive em outros campos de conhecimentos científicos que não propriamente a Geografia moderna. Conhecimentos do espaço produzidos pela literatura, música, teatro, cinema, artes em geral; pela cartografia, arquitetura, jornalismo, fotografia, filosofia, religião, história, sociologia, engenharia, física etc. Os conhecimentos geográficos não são apenas conhecimentos do espaço ou sobre o espaço material, específicos desses campos do discurso e da ação humana, mas os conhecimentos espaciais que circulam entre eles, que estes compartilham; conhecimentos com que estes campos sociais do saber/fazer produzem, são utilizados para produzir o espaço geográfico.
Saberes geográficos, como já vimos, são saberes espaciais gerados e necessários (ou seja, constitutivos) das práticas, experiências e relações sociais e espaciais humanas compartilhados ou específicos de um grupo, de um povo ou de uma sociedade e cultura. Os saberes geográficos também se materializam em obras, espaços, instituições e discursos, mas geralmente apresentam-se incorporado nos sujeitos, atores, agentes humanos, constituindo suas percepções, concepções, linguagem, narrativas e suas práticas espaciais cotidianas. Em relação aos conhecimentos geográficos mais especializados, os saberes geográficos dão espessura ou estofo às nossas maneiras de ver, dizer e fazer o espaço, ou seja, constituem a maneira de todos e de cada um de perceber, comunicar/representar e construir/organizar os espaços cotidianos da vida. Os saberes geográficos precisam ser compartilhados, socialmente produzidos e utilizados, para que façam sentido, tenham valor e efeito/eficácia. Os saberes geográficos constituem a forma como efetiva e afetivamente nos vinculamos e relacionamos com determinados lugares, com determinadas pessoas através/nos espaços em que vivemos e nos movemos.
A ciência geográfica, ou conhecimento geográfico científico, é uma forma de conhecimento característica da “modernidade”, que se apresenta em forma de informações sistematicamente produzidas, teorias e conceitos espaciais elaborados e operacionais, com os quais o mundo é interpretado e compreendido em sua diversidade e amplitude. Ainda que seja um conhecimento gerado dentro de um campo de conhecimento específico da ciência moderna e por sujeitos situados em determinados lugares, culturas e sociedade, este conhecimento da ciência geográfica tem como característica o fato de desenvolver, aplicar ou operar com conceitos que “valem”, podem ou pretendem valer para espaços do mundo todo.
O que difere o conhecimento geográfico científico, da ciência geográfica, dos demais conhecimentos geográficos, não é o fato de ser universal, racional, objetivo ou mais sistemático, quer dizer mais válido e verdadeiro que os demais conhecimentos e saberes geográficos, mas sim o fato de operar com conceitos sistematicamente elaborados a partir de maneiras próprias de produzir informações e realizar análises e interpretações do espaço, ou seja, se distinguem destes por explicitar a maneira pela qual foi produzido, os princípios em que se sustenta, expondo-se a críticas, contestações e reelaborações permanentes. A Geografia como ciência, assim, precisa obrigatoriamente dialogar com os saberes geográficos e os diferentes conhecimentos geográficos partilhados pelos demais campos do saber para construir seus conhecimentos do espaço.

Assim, quando na escola, a Geografia, nos fala sobre os diferentes espaços do mundo em que vivemos, fala de um espaço geográfico construído socialmente. O mundo enquanto um espaço habitado e construído pelos seres humanos, é interpretado pela Geografia através de conceitos diversos como cidade (urbano), campo (rural), paisagem, lugar, região, rede, território, natureza, meio ambiente, ecossistema etc. Muitos desses conceitos não são exclusivos da Geografia, mas na Geografia apresentam definições próprias, diferentes de outros campos, e que esta compartilha com outros campos de conhecimento, ao mesmo tempo em que esses conceitos são noções a que recorremos diariamente para ver, dizer e realizar nossas práticas sócio-espaciais, como é o caso de lugar e paisagem, por exemplo. Na Geografia escolar conhecimentos e saberes geográficos se apresentam articulados aos conhecimentos geográficos produzidos pela ciência geográfica.

Referências
CLAVAL, Paul. Terra dos Homens: a geografia. Trad. Domitilia Madureira. São Paulo: Contexto, 2010.
DARDEL, Eric. O homem e a terra. São Paulo, Perspectiva, 2011. 
MOREIRA, Ruy. O que é Geografia? 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2009 (Col. Primeiros Passos, 48).
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A geograficidade do social: uma contribuição para o debate metodológico sobre estudos de conflito e movimentos sociais na América Latina. En publicación: Movimientos sociales y conflictos en América Latina. José Seoane. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Argentina. Programa OSAL, 2003.

GEOGRAFIA - PARA QUE? PARA QUEM?

         Antes de nos perguntarmos o que é a Geografia ou o que a Geografia estuda - no fim das contas ambas as questões se resolvem numa só problemática - precisamos nos perguntar por que estudarmos Geografia? Para que serve a Geografia? Ou para quem serve? Precisamos também nos colocar para além das respostas prontas, das finalidades estabelecidas em livros didáticos, livros de ensino de geografia ou documentos oficiais.
A Geografia que se pratica nas escolas certamente tem um valor e uma importância social, para além de conhecimento estratégico ou pragmático. Mas não podemos tomar como objetivo da Geografia, sem mais questionamentos, “formar cidadãos críticos” ou construir “consciência crítica”. De todas as disciplinas escolares a Geografia é a que aborda temas e problemas da sociedade e mundo em que vivemos. É a ciência que nos ajuda a compreender essa sociedade, interpretá-la, posicionar-se nela de uma forma escalar, abrangendo todos os lugares do mundo. Em que a geografia ajuda/contribui para “formar” cidadãos? E de que modo a geografia escolar pode contribuir para o pensamento crítico? A Geografia pode contribuir para o exercício da cidadania, práticas de cidadania, mas esta não é uma especificidade disciplinar, é, de um modo geral, uma tarefa da educação escolar.
E consciência crítica? O que é isso? É evidente que a consciência se desenvolve a partir da aprendizagem, de todo processo aprendizagem. E que a crítica é fundamental para nos posicionarmos no mundo como sujeitos, agentes, protagonistas. Porém, por que a Geografia também não atuaria no sentido de construir um novo sentimento, novas formas de sentir, de querer, de imaginar, tanto quanto pensar e atuar no mundo? E a crítica? O que é a crítica sem a análise, a interpretação, a compreensão, a meditação, a reflexão? A geografia permite uma crítica do mundo, das instituições, dos sujeitos e da sociedade em que vivemos a partir de uma análise, de uma interpretação geográfica. Portanto, a especificidade do ensino de geografia é possibilitar o desenvolvimento de conhecimentos geográficos da sociedade e do mundo que contribua para a constituição de novos sujeitos, de novos protagonistas sociais, cidadãos de direito e de fato. Nesse caso, a cidadania deve está articulada ao reconhecimento das diferentes identidades socioculturais.
A Geografia é importante porque possibilita o desenvolvimento/construção de conhecimentos sobre a sociedade como espaço socialmente produzido. Por isso ensinamos Geografia: porque não existe sociedade sem espaço. Ao se organizar socialmente os homens e as mulheres ao mesmo tempo constroem espaço. Não existe uma sociedade que se organize primeiro e depois construa “seu” espaço, toda sociedade se organiza espacialmente desde o início e sempre (Porto-Gonçalves, 2003).
Do ponto de vista da transformação e da mudança a que todo conhecimento visa, pois não tem sentido um conhecimento que vise promover mudança, a Geografia e o espaço geográfico têm grande importância. Acostumamos a compreender a mudança em termos de tempo, de história, pois é fato sabido que nós fazemos a história. No entanto, toda mudança histórica é mudança geográfica. Fazemos a Geografia do mesmo modo que fazemos a história. E não há como alterar as condições sociais presentes conservando o espaço tal como este se apresenta. Não há como criar “um mundo em que caiba outros mundos”, como entendem os zapatistas, sem outras geografias, outros espaços geográficos.
A Geografia é a ciência dos “outros”, outros espaços, outros povos, outros grupos sociais, outras culturas. Portanto, a Geografia ensina pela interpretação do espaço a diferença, a pluralidade da condição social e geográfica humana. E ensina também a pensar e atuar espacialmente para transformação social.

Podemos fazer a seguinte pergunta: todos possuem uma vida boa? Todos vivem bem, com dignidade no mundo atual? Certamente que não, sabemos. Então, por isso estudamos Geografia: porque precisamos transformar a vida transformando o espaço! Não teria sentido estudar Geografia se através desse conhecimento não fosse possível encontrar alternativas para uma vida melhor, para uma vida mais digna. E esta vida boa, esse bem viver, de que a grande maioria da humanidade carece, só é possível com a construção de novos espaços de vida.

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO

Atualmente, tornou-se um lugar comum na Geografia dizer que esta estuda o “espaço geográfico”. É aceito amplamente que o espaço geográfico é historicamente produzido pela sociedade. A produção do espaço geográfico pela sociedade é compreendida a partir da relação desta com a natureza, por intermédio do trabalho (ação produtiva) e da técnica (meios, modos e instrumentos de trabalho ou produção).
Nessa versão difundida da produção do espaço o homem, organizado em sociedade, se apropria e transforma a natureza através do seu trabalho, por meios de técnicas, em vista de satisfazer necessidades. O espaço geográfico é produzido com essa ação transformadora do homem sobre o meio material/natural. Esta forma de compreender o espaço geográfico como socialmente produzido foi muito importante para os estudos geográficos, mas é bastante problemática, restritiva e, de certo modo, empobrecedora. Há claramente aí uma exclusão ou secundarização das demais relações sociais, como as relações de poder e as relações culturais, além do predomínio de uma visão dicotômica, unilateral e externalista da sociedade (homem) e natureza (meio). Portanto, há uma redução das relações de produção às relações de trabalho e uma redução da produção do espaço à relação sociedade e natureza (ou homem e meio, em algumas versões). Podemos dizer que a teoria mais disseminada da produção do espaço é marcada pela centralidade conferida ao trabalho e à técnica e, também, às relações de produção as capitalistas, sendo o capitalismo visto como um modo de produção construído na Europa (visão eurocêntrica do capitalismo) e que se difunde pelo mundo todo a partir daí.
Uma sociedade não se organiza primeiro para depois produzir o espaço geográfico, ou vice-versa. Toda sociedade ao se constituir enquanto tal constitui “seu” espaço geográfico (Porto-Gonçalves, 2003). Por outro lado, sociedade e natureza não são termos que se excluem e não podem ser compreendidos numa relação de causalidade unilateral, seja da natureza para a sociedade, seja da sociedade para natureza. A “natureza” exerce sempre uma co-ação na sociedade, é coagente, age com a sociedade, ou seja, não é uma base, um suporte passivo para ações dos homens e mulheres (Porto-Gonçalves, 2003).
Desse modo, o espaço não é produzido somente através dessa interação sociedade e natureza, por meio do trabalho e da técnica. O espaço é construído e constituído por uma multiplicidade de relações sociais, pelas relações que os diferentes seres humanos estabelecem entre si, dentro de um grupo ou comunidade (uma formação socioespacial) e relações com “outros” grupos e comunidades, amistosas e conflituosas, competitivas e cooperativas. Não se produz espaço geográfico por uma relação direta e indireta da sociedade sobre uma base natural tão somente, já que esta ação não tem sentido nem efeitos sem a relação simultânea que indivíduos e grupos estabelecem entre si. As sociedades se formam e organizam construindo/constituindo um espaço através de relações sociais e de poder; relações sociais de produção (atividades que sob o capitalismo tomaram o nome de trabalho e se expressam em formas específicas de trabalho capitalista e não-capitalista), relações sociais de exercício do poder e de resistência e relações sociais de produção de significações imaginárias, simbólicas, culturais.
As sociedades que os europeus conquistadores e chamaram de “indígenas”, que viviam no espaço que estes europeus chamaram de “América”, construíram o “seu” espaço geográfico. O geógrafo Milton Santos entende que este se constituía em um “meio natural” (mas não pré-técnico), mas em realidade era um espaço geográfico, apesar das alterações que estas sociedades promoveram por centenas de anos na “natureza” não terem sido materialmente “expressivas” (o que não quer dizer que não tenham empreendido importantes transformações materiais, ecológicas e culturais do meio), em comparação com outras sociedades. O que leva Santos a definir esse espaço geográfico como meio natural é seu centralismo técnico, considerando as técnicas usadas e desenvolvidas pelas sociedades europeias, ocidentais, capitalista e modernas.
Evidentemente que as sociedades indígenas criaram e desenvolveram técnicas (na construção de habitações, instrumentos e armas; no uso medicinal de plantas e animais; no cultivo de produtos, como o milho e a mandioca; na confecção de canoas, armas, utensílios etc.), mas todas estas eram inseparáveis da cultura, por isso consideradas “rústicas”, “primitivas”, “tradicionais”. O espaço geográfico produzido pelas sociedades indígenas – e em grande parte destruído pela colonização europeia –, assim como por toda sociedade, envolvia o “atividades produtivas” (caça, pesca, plantio e coleta), as técnicas (instrumentos e modos de realizar a produção), a cultura (festas, danças, músicas, rituais, cerimônias, narrativas, valores, costumes, normas, símbolos, linguagens, pinturas) e o poder (governo, guerras, apropriação e controle de território). As atividades relacionadas ao trabalho e com o intermédio de técnicas não são as principais e nem as mais importantes na produção do espaço geográfico pelas sociedades indígenas. E nem em nenhuma sociedade assumem tal centralidade e primazia que os geógrafos lhes atribuem, mesmo nas sociedades modernas capitalistas urbano-industriais.
A separação entre homem e natureza também é própria da cultura ocidental capitalista moderna. Por isso a “natureza” não é uma base material independente de nossas ações e significações (é um conceito situado, localizado, relativo). A natureza é sempre “produzida” social e culturalmente de maneira diversa. Ao nomear a natureza como uma exterioridade em oposição ao homem já se está produzindo uma natureza (concepção, representação, ideia), pelo significado que essa concepção lhe atribui. Ou seja, esta materialidade natural, na qual não se exerceu nenhum trabalho humano (de apropriação e modificação direta) é construída e apropriada simbolicamente. A sociedade produz em relação a esta uma rede de significados, valores e relações que de diversas maneiras determina o modo como esta natureza pode ser apropriada, dominada e transformada materialmente pela produção, pela cultura e pelo poder. Porque não há produção do espaço sem produção de significados sociais e exercício do poder.
Compreendemos, assim, que o espaço geográfico é produzido por toda sociedade através de relações sociais de produção – não somente trabalho –, de significação e de poder/resistência. Estas significações sociais e as relações de poder/resistência não apenas constroem o espaço geográfico como o constituem desde o início de sua produção. Estas encontram-se, geralmente, objetivadas no espaço em forma de objetos, práticas e valores culturais/simbólicos, ao mesmo tempo em que estão incorporadas em instituições e nos corpos dos homens e mulheres na forma de valores, costumes, crenças, hábitos, conhecimentos, normas, práticas etc.
Toda produção do espaço envolve o saber, determinado modo de produzir saber. Ao produzir(-se) a sociedade produz um saber, melhor dizendo, saberes diversos e como toda produção é produção de espaço (Santos, 1988), podemos então dizer que toda produção do espaço é produção de saberes espaciais ou geográficos. Desde o início as sociedades produzem o espaço geográfico como materialidade (para seu abrigo e reprodução, satisfação e realização), como um “magma de significações imaginárias” (Castoriadis, 1982) ou culturais, como espaço de exercício do poder e da resistência, construindo nesse processo “conhecimentos geográficos”, sem os quais o espaço não pode ser produzido, vivido e compreendido.
A produção do espaço geográfico envolve quase sempre a apropriação, transformação e domínio material e simbólico da “natureza” (de meios, recursos, propriedades, fenômenos e dinâmicas físico-materiais), através de atividades produtivas, das técnicas e da cultura – uma “natureza” concebida de modo muito diferente por cada sociedade. Ao mesmo tempo, essas interações sociedade e natureza (sendo que a natureza atua ou co-age também na produção do espaço geográfico) são constituídas e marcadas pelas relações de poder/saber e poder/resistência. Desde o começo, todo tempo e em todo lugar, o espaço é produzido cultural e politicamente, tanto em função, por exemplo, do regime de propriedade, quanto em função do domínio, controle, apropriação e das resistências, o que muitas vezes conduz aos conflitos e guerras, mas também negociações e cooperações estratégicas.
O espaço é produzido e simultaneamente governado e significado. Se as técnicas definem a capacidade de uma sociedade de alterar o “pedaço de natureza” com que se relaciona (Santos, 1996), esta capacidade e o modo de alteração dependem sempre da cultura. Se a cultura e a técnica definem uma “mediação” na relação sociedade e natureza, na produção do espaço, esta mediação apenas se realiza através de relações sociais de poder que definem o uso das técnicas e a produção de significados e valores sociais. O espaço é sempre produto, condição e meio de relações de produção (Lefebvre, 2000), relações de poder/saber/resistência e relações culturais.
Não são unicamente o trabalho e a técnica que atuam na produção do espaço geográfico, também a cultura e o poder atuam na produção do espaço, ou seja, não apenas servem de intermédio e mediação, mas são constitutivas das relações dos homens entre si e da sociedade com a “natureza”; sem a cultura e o poder não se pode compreender o desenvolvimento das técnicas e seus usos sociais. O poder e a cultura fazem com que determinadas condições técnicas sejam criadas pelas sociedades e condicionam a distribuição, regulação e usos do sistema técnico.
Sociedades diferentes criam e usam as mesmas técnicas de modo diferente, produzindo espaços diferentes e diferenciadamente. Algumas técnicas criadas por uma sociedade são utilizadas de maneira completamente diversa por outras, em vista das finalidades políticas e segundo seus valores culturais (Santos, 1996). É o que aconteceu com o uso da pólvora pelos europeus, por exemplo, uma invenção cultural chinesa – estes a usavam para fogos de artifício – a qual os europeus deram um uso militar, produzindo armas de fogo. Ou uso do cavalo, do machado e outros instrumentos de metal pelos indígenas, a partir de suas práticas e valores culturais não-capitalistas, ou seja, não necessariamente voltados para gerar mercadorias, lucro e acumulação de riquezas ou domínio, desigualdade e diferenciação social.
Portanto, não é apenas as atividades deliberadas e racionais do trabalho que produzem o espaço geográfico, mas nem todo trabalho é ação racional e consciente. O trabalho é uma das atividades produtivas (já que as atividades/ações/práticas relacionadas ao poder e à cultura também são produtivas, produzem espaço) e não se pode dizer que seja a mais importante, a principal, pois em toda sociedade o modo de produzir (que não visa apenas satisfazer necessidades, como também prazeres e interesses, aspirações e desejos, paixões, projetos, sonhos, delírios e utopias) está vinculado com o modo de governar e o modo de viver, pensar, sentir, significar o mundo, a vida, as relações, os objetos etc. Ou seja, as ações políticas e as criações culturais são inseparáveis da produção econômica-material do espaço. E aquilo que se denomina de “necessidades”, que o trabalho visaria satisfazer são também produzidas e reproduzidas política e culturalmente pela sociedade (Marx e Engels, 2004).
O próprio trabalho pode ser interpretado como uma “atividade” histórica, social e cultural produzida, governada e significada de maneira específica (Marx, 1996). São as relações sociais e de poder que produzem o que se chama de trabalho, a necessidade (vestir, calçar, morar, comer, beber, amar, se reproduzir) e a técnica, de acordo com as respostas das sociedades às condições naturais e históricas, que são técnica e culturalmente superadas e/ou transformadas. Mas, as sociedades também produzem necessidades e produzem produtos para satisfazê-las que não dizem respeito à proteção, nutrição e reprodução dos corpos humanos. São necessidades relacionadas à busca do belo, à busca de prazeres, à espiritualidade (relação com o sagrado), à realização do amor etc. (Lefebvre, 2000). Não é o trabalho necessariamente que satisfaz tudo isso, pois nenhuma sociedade vive sem artes, sem religião, sem sexo e amor. Pelo trabalho e por meio das técnicas se constrói o palácio do governo e o templo dos deuses, mas é o governo que exige e determina o modo de construir (com trabalho escravo, com servidão ou com trabalho assalariado) e a cultura que define o modelo e sentidos das edificações, além dos materiais, recursos e artificies humanos disponíveis.
Desse modo, além da técnica e do trabalho (produção econômica, material) ao se construir o conceito de espaço geográfico como produzido pela sociedade, temos que levar em conta a cultura e o poder, sem que haja uma primazia ou precedência epistemológica, ontológica ou lógica entre estes. Podemos usar como exemplificação das relações de poder na produção do espaço as formas que as sociedade estabelecem o governo através da apropriação, domínio e controle do espaço e também das resistências; as guerras são os momentos e os modos em que as relações de poder entre povos é mais explícita na produção (pela destruição, muitas vezes) do espaço. Podemos também usar como exemplo das produções de significados na produção do espaço as festas (profanas e/ou sagradas), através do modo como as sociedades representam para si o mundo, do modo como o vivem, habitam etc. As festas também, em cada sociedade, levaram a produção de espaços específicos para suas realizações, bem como agentes hegemônicos as utilizaram e a utilizam como meio de dominação ideológica – as festas romanas, as festas religiosas, as festas/espetáculos modernas (Lefebvre, 2000).
Esse espaço geográfico assim produzido não é apenas um palco, uma superfície ou um teatro onde as pessoas e as coisas, a relações e fenômenos estão situados e os acontecimentos ocorrem. O que a noção de produção do espaço trouxe de importante para nossa compreensão geográfica do mundo foi a ideia de que o espaço geográfico é tanto um produto, um resultado, como um meio e uma condição de produção e reprodução da sociedade. Desse modo, não é que a sociedade se organiza para depois produzir o seu espaço; o espaço geográfico é produzido ao mesmo tempo em que a sociedade se produz e reproduz. Sem o espaço geográfico não existe sociedade, nenhuma forma de sociedade pode existir, pode se produzir e reproduzir enquanto sociedade (Porto-Gonçalves, 2003).
Assim, transformar a sociedade é também transformar o espaço geográfico, o modo como este é produzido, apropriado, governado e significado socialmente. O ser humano não é apenas um agente da História, ele também é um agente da Geografia. O ser humano constitui sua existência geo-grafando a terra (Porto-Gonçalves, 2003). O ser humano produz a História[1] e ao produzi-la produz a Geografia, o espaço geográfico sem o qual não pode haver história, não só porque é palco dos acontecimentos históricos, mas sim porque é produto, resultado, condição e meio de realização da História. A História não se faz no espaço, mas se faz com/através do espaço geográfico e faz o espaço.
Isso nos coloca outro entendimento do que seja o espaço geográfico e da sua importância para compreensão do mundo, da sociedade, do futuro e das transformações que acontecem no mundo ou esperamos aconteçam e/ou buscamos realizar. O espaço geográfico é assim produto de relações e também um espaço de relações múltiplas (Massey, 2008). O espaço é tecido por uma rede complexa de relações sociais e de poder, efetivamente existentes ou potenciais. Temos que compreender como se dão essas relações para compreender como o espaço se constitui e se apresenta e organiza, a maneira que se organiza para uns, mas se apresenta como desordem para outros (Santos, 1996).
O espaço sempre é heterogêneo, diverso, plural, ou seja, uma multiplicidade (Massey, 2008). O espaço geográfico não é apenas uma coleção de objetos, ou conjunto de coisas, é uma multiplicidade que se apresenta estruturada de forma desigual, contraditória, ambivalente. Além disso, o espaço geográfico está sempre a se fazer, nunca está completo, terminado, concluído; é sempre um espaço aberto (Massey, 2008). O espaço em sua materialidade e organização está sempre mudando: construções envelhecem, são derrubadas ou reformadas, novas são erguidas; novas relações estão sendo tecidas ou se tornam possíveis; redes se ampliam, intensificam, desfazem, refazem ou tornam possíveis certas conexões e significados. Uma ação qualquer pode fazer com que espaços apropriados e usados de um certo modo e por determinado grupo de pessoas passem a ser usados, apropriados e valorizados de outras maneiras, com outros objetivos, por outras pessoas. O espaço geográfico é um espaço de relações, constitui-se numa multiplicidade e nunca está pronto e acabado; e quase sempre se apresenta como um convite à ação (Massey, 2008; Santos, 1996).
O conceito de espaço geográfico como socialmente produzido é diferente do conceito de natureza e não é sinônimo de meio físico-material, ou seja, apenas um palco (inerte, parado, fixo) sobe o qual as pessoas e coisas podem ser localizadas, criadas e os acontecimentos se realizam. Assim, fazer uma análise geográfica do mundo é interpretar como as formas materiais existentes foram e são produzidas, usadas, apropriadas, governadas e significadas; as relações sociais, culturais e de poder/resistência que deram origem, definiram e definem os usos e sentidos dessas formas; os processos históricos que estão nestas materializadas; os agentes sociais e instituições que se constituíram ao produzir, governar e significar esse espaço etc. Isso só é possível se analisarmos o próprio espaço que produzimos, no qual vivemos, a partir dos diferentes lugares que ocupamos, usamos ou pelos quais transitamos, nos movemos diariamente, aos quais estamos vinculados efetiva e afetivamente.

Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição Humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
CASTORIADIS, Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. 4ª éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000.
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2007.
_____. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006
_____. O Capital: Crítica da Economia Política. V. 1. Livro Primeiro. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kother. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
MARX, Karl & ENGLS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Feuerbach – A Contraposição entre as Cosmovisões Materialistas e Idealistas. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 2004.
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A geograficidade do social: uma contribuição para o debate metodológico sobre estudos de conflito e movimentos sociais na América Latina. En publicación: Movimientos sociales y conflictos en América Latina. José Seoane. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Argentina. Programa OSAL, 2003.

SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Hucitec, 1985.
_____. Por Uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, 1988.
_____. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1986.
_____. Técnica, Espaço Tempo. São Paulo: Hucitec, 1994.
_____. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

SANTOS, Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro:Record, 2001.



[1] Marx afirmava que os homens fazem a sua história, mas em situações que não são por ele determinadas. Hannah Arendt (2005: 232), no entanto, afirmava que embora a história deva a sua existência aos homens, obviamente não é, todavia, “feita” por eles. 

DA GEOGRAFIA À GAIA-GRAPHIA

Os livros didátilos e os professoras e professoras de Geografia começam, geralmente, explicando para seus alunos e alunas o que é a Geografia e o que a Geografia estuda. Estas duas questões se confundem, pois a geografia se define por aquilo que estuda. Alguns ainda recorrem àquela velha etimologia da palavra: Geo (Terra) + grafia (estudo). A geografia significa etimologicamente o estudo da Terra.
O geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2002) propõe uma outra etimologia, recorrendo ao significado originário do segundo termo que compõe a palavra geografia: graphia, do grego, significa escrita. Portanto, nesse sentido, Geografia passa a ser a escrita da Terra, as marcas, os traços significativos, expressivos que os homens e mulheres criam na terra, sobre a terra como uma escrita. Nesse sentido, transforma a palavra Geografia (um substantivo) em um verbo. O que fazemos nós seres humanos e geógrafos é geografar a Terra. Este sentido está em consonância com o fato de reconhecermos que fazemos “a Geografia”, assim como e ao mesmo tempo em que “fazemos a História”.
Podemos aceitar esse importante deslocamento de sentido etimológico/epistemológico e propor também que se cambie o sentido original do termo geo, ou seja, a palavra grega para terra. Geo, que significa Terra, é, em verdade, uma forma latina (masculino) da palavra grega Gaia. Na Grécia antiga gaia era uma deusa relacionada à terra, mas também significava alegria. Estes sentidos da palavra são recuperados e ressituados por Nietzsche em seu livro A Gaia Ciência. A geografia deveria escrever-se Gaia-graphia. Nossa geografia seria a escrita alegre da terra, ou um saber, uma ciência alegre da escrita da terra, do ato de grafar alegremente a terra. Quando os homens e mulheres escrevem a terra, geografam-na, tornam-na um espaço significativo. Só é espaço geográfico o espaço que tem significado para os homens e mulheres, ou seja, é significativamente apropriado. Assim, grafar a terra é tornar o espaço expressivo e significativo para nossa existência, e ao mesmo tempo é produzir um saber, uma ciência alegre sobre essa terra escrita por nossas ações. A Geografia é uma gaia ciência, é um ato de escrever, de imprimir na Terra nossas marcas expressivas, geografando-a.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira cita como epigrafe uma passagem da pesquisa de Maria Regina T. Sader (Espaço e Luta no Bico do Papagaio) muito significativa:

Eu perguntei se não aprendiam nada de Geografia. Não precisa, disse um deles, isso a gente aprende é no pé. Os igarapés vão pro Tocantins. O Tocantins desce pro mar, é só olhá, né? No topo daquele monte não serve plantá. A terra é ruim. No baixo é boa. É no pé mesmo, andando e olhando. (Apud Oliveira, 2008: 135).

Geografia se aprende no pé, andando e olhando. Por isso que o agricultor do Bico do Papagaio não via necessidade de se aprender geografia (na escola), pois a geografia de que eles precisavam, essa se aprendia no pé, com a experiência corporal, ao andar (mover-se) e olhar (observar) o meio geográfico em que se vive. Mas, vemos que este compreende como “geografia” o conhecimento do espaço físico-natural: para onde correm os igarapés e o rio e onde a terra é boa ou ruim para plantar. Já há uma concepção de geografia animando sua forma de compreender a geografia: a geografia é um conhecimento da natureza, do meio físico que habitamos e com o qual lidamos.
A geografia antes de tudo é um dos “saberes vernaculares”, um “saber banal”, por isso que Paul Claval escreve que:

[...] a geografia está presente nas práticas, nas habilidades, nos conhecimentos que todos sempre mobilizamos em nossa vida diária, nos preceitos que os governos observam para dirigir seus países ou nos procedimentos aos quais recorrem os empreendedores para conceber, fabricar e divulgar os bens que eles produzem e vendem (2010: 8).

Sendo assim, a geografia pode ser vista como um saber produzido e usado corriqueiramente por todos os sujeitos, em vários contextos sociais, enquanto um saber presente em práticas, habilidades e conhecimentos que “tratam dos meios nos quais vivem os grupos” e “também dizem respeito ao tecido social no qual evoluem as populações e às redes que o estruturam; eles tratam das representações do que dá sentido às suas vidas” (CLAVAL, 2010: 12), sendo que “Desde a origem dos tempos, todo homem é geógrafo” (CLAVAL, 2010: 11).
Ruy Moreira (2009: 8) cita uma definição de geografia de Estrabão[1], considerado o criador da geografia:

[...] a geografia familiariza-nos com os ocupantes da terra e dos oceanos, com a vegetação, os frutos e peculiaridades dos vários quadrantes da Terra; e o homem que a cultiva é um homem profundamente interessado no grande problema da vida e da felicidade.

Segundo Ruy Moreira (2009: 8) “O homem, a terra, a vida e a felicidade, as relações que os enlaçam na totalidade dos modos de vida variáveis no espaço e no tempo é o que de Estrabão até hoje definem a geografia e seu modo de envolvimento”. A frase atribuída a Estrabão merece que nos detenhamos em seus detalhes. Primeiro, a geografia nos familiariza com os ocupantes da terra (solo, chão, base física) e dos oceanos (as águas). Isso significa que a geografia nos proporciona conhecer (familiarizar-nos) com aqueles que ocupam terra e os oceanos, sejam os seres humanos, sejam outras criaturas vivas. A terra e as águas são ocupadas de diferentes maneiras em cada espaço e tempo do nosso planeta, a geografia nos possibilita saber como esses “ocupantes” vivem em cada um desses “quadrantes da Terra”, quer dizer, considerando o planeta em sua totalidade.
Segundo, a geografia nos familiariza também com a vegetação, os frutos e as peculiaridades dos vários quadrantes da Terra, o planeta como um todo. Nesse sentido, a geografia é um conhecimento da variação ou diferenciação do planeta em termos humanos e naturais (vegetação, frutos). Frutos aqui também podem ser considerado os frutos mesmos (das árvores), mas também os frutos da terra e dos oceanos, ou seja, o que produzem seus ocupantes, o que é produzido em diferentes lugares. A geografia volta-se para as atividades produtivas dos seres vivos em geral e dos seres humanos em particular. Conhecer o que se produz (e como se produz) em cada lugar é conhecer a geografia. A geografia é um saber das “peculiaridades” da Terra em sua totalidade, ou seja, é um saber do que há de específico, único em cada lugar e em todo lugar do planeta, é um saber englobante. Estas peculiaridades – o que torna um lugar diferente dos demais – é uma marca da geografia, sua forma de considerar porque os ocupantes da terra e oceanos, e os elementos que a constituem, como a vegetação, bem como os “frutos” desse lugares, são tão diferentes uns dos outros.
Terceiro, o conhecimento geográfico volta-se para o grande problema da vida e da felicidade. Creio ser esta a parte mais enigmática e instigante da frase atribuída a Estrabão em sua definição da geografia. Por que o geógrafo (o homem que cultiva a geografia) está profundamente interessado justamente no problema da vida e da felicidade? Afinal, em que conhecer os ocupantes da terra e dos oceanos, a vegetação, os frutos e as peculiaridades dos vários quadrantes da Terra leva o sujeito desse conhecimento a se interessar, ou pressupõe que este esteja interessado, por esse problema da vida e da felicidade? Talvez, temos algo aqui, no início da geografia, que perdura realmente até hoje: é impossível não se familiarizar com a diversidade de formas de ocupação, paisagens, produtos e diferenças de cada lugar do nosso planeta sem nos interessar pelo sentido e destino da vida em geral (o problema da vida) e também o nosso destino humano comum, enquanto uns dos ocupantes da terra e dos oceanos (o problema da felicidade). De que adianta conhecer tudo isso, familiarizar-nos com os modos de ser e de viver de todos os lugares do mundo, sem se preocupar com problema da vida e da felicidade? A vida e a felicidade são realmente problemas com que todo saber geográfico nos defronta ainda hoje. Como viver? Como encontrar a “felicidade”, ou seja, uma boa vida, um viver bem? Como con-viver bem com todos os “ocupantes” humanos e não humanos desse planeta Terra? Ao geógrafo preocupa-o conhecer o mundo para transformá-lo.

Referências:
CLAVAL, Paul. Terra dos Homens: a geografia. Trad. Domitilia Madureira. São Paulo: Contexto, 2010.
MOREIRA, Ruy. O que é Geografia? 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2009 (Col. Primeiros Passos, 48).
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (Org.). Para onde vai o ensino de Geografia? 9 ed. São Paulo: Contexto, 2008 (Repensando o Ensino).
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter e PEREIRA, Edir Augusto Dias. De América Latina, de Abya Yala, de América Mestiça, de América Criolla e de suas Contradições. America Latina en Movimiento Online. 23/09/2009. Disponível em: <http://www.alainet.org/es/node/136544#sthash.ZzQoziSx.dpuf>.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Da geografia às geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades. In: La Guerra Infinita: Hegemonía y terror mundial. Ana Esther Ceceña y Emir Sader. CLACSO, 2002. 
SPOSITO, Eliseu Savério e SOBREIRA, Antonio Elisio Garcia. Caminhos do Pensamento Geográfico. Rede São Paulo de Formação Docente. Curso de Especialização para o quadro do Magistério da SEESP: Ensino Fundamental II e Ensino Médio. UNESP: São Paulo, 2011.



[1] Estrabão nasceu da Amaseia (atual província da Amasya, na Turquia), então fazendo parte do Império Romano (63 ou 64 a.C. e cerca de 24 d.C.). Originário de família rica, pôde prosseguir seus estudos em Roma, onde leu os filósofos e geógrafos que o antecederam. Fez viagens ao Egito e à Etiópia. Seu nome é um termo utilizado pelos romanos para designar aqueles que tinham os olhos deformados ou portadores de estrabismo (SPÓSITO e SOBREIRA, 2011: 11).