A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESPAÇO PELA CRIANÇA

"... por enquanto, ei-lo sentado no chão, imerso num profundo vazio.
Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira voltada para dentro: todo o seu equilíbrio é interno.

Na parede tem o retrato de O MENINO. É difícil poder olhar para o alto sem apoiar-se num móvel. Isto ainda ele não treinou.
Agora, a inteira atenção voltada para fora, ele observa o que o ato de se erguer provocou: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita.
Sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Desliga-o, por uma fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz e, num único gesto total, ele cai sentado". (Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, p.151).


A maioria dos estudos que buscam analisar a construção do conceito de espaço pela criança é de viés psicológico ou psicologizante. A maioria se baseia na teoria de Piaget (1896-1980), à qual a Geografia recorre com frequência e sem mesmo questionar a validade universal de suas ideias. Logicamente que esta teoria de Piaget pode muito contribuir para a forma como a noção ou conceito de espaço é construído pelas crianças, mesmo antes de adentrar a escola. Todavia, busca-se também apoio noutro teórico, que não se refere necessariamente à construção da noção de espaço, mas à construção de conceitos de uma forma geral: Vygostsky. Como vocês sabem, estes são duas figuras carimbadas na Pedagogia.
Dos dois, penso que as contribuições de Vygostky são as mais interessantes, ainda que os geógrafos tenham recorrido a este mais para entender e explicar a formação de conceitos ou conhecimentos geográficos de uma forma geral[1].  Outro psicólogo que também tratou do processo em que a criança constrói a noção/conceito de espaço foi Winnicot, mas este não tem sido muito considerado pelos geógrafos, pelo menos aqui no Brasil.
Desde a mais tenra idade, desde o nascimento, as crianças constroem com grau crescente de complexidade uma noção de espaço que não é apenas topológica, mas profundamente simbólica, porque herdada e construída dentro de um ambiente social, geográfico, histórico e cultural específico. Uma criança em algum país da África, vivendo ainda numa tribo, constrói da mesma forma um conceito de espaço como uma criança aqui no Brasil morando em uma cidade grande em um apartamento? O que existe de diferente ou em comum entre o modo como uma e outra criança constroem o conceito de espaço? Uma resposta imediata é o próprio espaço em que estas crianças são criadas, a cultura a que pertencem, ou seja, o modo como são criadas, educadas; as línguas e valores de seus pais, de seu grupo social... Tudo isso é diferente e constitui formas diferentes de construção da noção de espaço pelas crianças. São outros objetos com que têm contato, outros materiais e meios em que se move; outros os alimentos e gostos, outras as sonoridades que seus corpos experimentam.
A noção de espaço na criança, inicialmente, é construída a partir do desenvolvimento e dos movimentos do seu corpo, de acordo com o espaço social e material e o ambiente cultural em que nasce e vive. Entre a criança (o seu corpo) e o espaço (físico) existe todo um conjunto de mediações, antes e depois que possa deslocar-se no espaço e deslocar coisas no espaço por si mesma, como corpo da mãe, os objetos e, em particular, a linguagem e as representações espaciais. Antes de começar a engatinhar e andar, antes de começar a falar, no entanto, o processo de construção da noção de espaço pela criança já se desenrola a partir de seus sentidos, das sensações que começa distinguir no seu corpo: o frio, o calor; o seco, o molhado e úmido; as texturas e consistência dos objetos, superfícies e dos outros corpos; luminosidades, escuridão, penumbra; as cores e seus matizes; o contato com a água no banho; os cheiros das pessoas, das coisas, dos objetos; do produtos que lhe passam, com que lhe asseiam; dos remédios e vitaminas; dos hospitais, dos carros, dos quartos etc.
Antes de começar engatinhar, andar e falar, ou seja, nos primeiros anos de vida, a noção de espaço da criação é completamente reflexa e depende das reações e repostas quase automáticas do seu corpo. No entanto, todos os estímulos externos sensoriais que experimenta produz inicialmente uma noção de espaço difusa, indistintamente percebido; um espaço como uma externalidade sem qualidades distinguíveis. Até começar a andar e falar. (Não devemos esquecer que neste período inicial o sistema nervoso, o cérebro, ainda está em desenvolvimento).
É através do engatinhar, do andar e do falar que a noção de espaço na criança começa a se desenvolver aceleradamente de forma complexa; para além dos estímulos e das respostas sensórias reflexas do corpo. Um espaço topológico, que pode experimentar com o próprio movimento do corpo, pelo manusear coisas e pelas palavras e sons, começa a ganhar um sentido, no qual pode identificar diferentes texturas, pesos, cheiros, cores, nomes, sons etc. De fato, a criança aprende a reconhecer o espaço por onde se move, com mais frequência por si mesma, e com objetos nomeados e dispostos de uma dada maneira.
Então, antes de entrar na escola as crianças já desenvolveram uma noção de espaço a partir de suas experiências cotidianas, das aprendizagens que incorpora através das linguagens (em particular a falada e visual ou audiovisual). Podemos chamar esse conceito de espaço da criança, assim, de um conceito cotidiano, mas que não se reduz apenas às dimensões euclidianas do espaço, em geral relacionada à distância e localização, pois envolve um conjunto de símbolos e normas (lugares proibidos, por exemplo), além de outras formas de distinção e valorização de lugares por elas frequentados com ou sem os adultos.
Além do mais, essa noção de espaço não se reduz apenas aos lugares que ela conhece diretamente, no qual esteve ou costuma ir (a casa, a rua, a praça, a igreja etc.), pois as crianças estão sujeitas ao bombardeamento de imagens que atualmente se fazem mesmo dentro dos lares através da televisão, desenhos e fotografias. Essas imagens e informações que as crianças recebem sobre lugares que desconhece implicam na maneira como compreendem o espaço, nas imagens e conceitos que criam dos espaços que conhecem.
Atualmente, mesmo no campo, as crianças tem nessas imagens uma fonte importante da construção pré-escolar da noção de espaço. Além dos mais, a interligação de todos os lugares pelas tecnologias e pela circulação de produtos comercializados, produzidos em lugares diferentes e distantes, fazem dos lugares verdadeiros mosaicos de objetos, elementos e processos originados em lugares distantes e diferentes. O cotidiano que as crianças experimentam em quase todos os lugares é marcado por essas conexões que os lugares mantêm com outros, às vezes a presença ostensiva de elementos, objetos, produtos, linguagens, geradas em diferentes partes do mundo. Isso que a geógrafa Doreen Massey (2000) chamou de o sentido global do lugar constitui parte fundamental da experiência e das relações espaçais das crianças, bem como das representações do espaço, que criam nas crianças o conceito cotidiano de espaço. 
Assim, para que o ensino de Geografia possa construir um conceito geográfico de espaço nas crianças, não adianta apenas levar em conta as fases de seu desenvolvimento, tal como descritas e caracterizadas por Piaget, nem simplesmente a noção de contexto/cotidiano e cultura como algo vinculado especificamente a um determinado lugar. É preciso levar em conta e compreender como nos lugares em que as crianças vivem o mundo se realiza, através de uma multiplicidade de relações com lugares próximos e distantes. Ou seja, é preciso compreender que relações e representações espaciais constituem a maneira da criança compreender o espaço, interpretar o espaço a partir de suas múltiplas referências sociais, materiais e simbólicas.
Aquilo que chamamos de “conceito cotidiano”, a partir do qual podemos construir os conceitos científicos constitui-se de um conjunto de representações espaciais (espaço concebido) e de espaços de representação (espaço vivido) que informam e constituem as práticas espaciais (espaço percebido)[2] das crianças nas sociedades em que vivem, nos grupo sociais em que estão mais diretamente integrados. 



[1] Cavalcanti, 2008.
[2] Lefevbre, 2000.

0 comentários:

Postar um comentário